terça-feira, 12 de outubro de 2010

Eleitor num boteco do Leblon

RIBEIRO, João Ubaldo. Eleitor num boteco do Leblon. O Globo, Rio de Janeiro, 10 out. 2010.

- Cara, eu vou te contar, parece perseguição, caso pensado do destino contra mim.

- É verdade, o Flamengo...

- Dispenso insinuações. Se é para desacatar, pode dizer, que eu mudo de mesa, não tem nada a ver com o Flamengo.

- Que é que foi então, a Martinha casou de novo, você está de genro novo outra vez?

- Não, quanto a isso tudo bem. Ela casa de seis em seis meses, eu já acostumei, já tenho até um rotina de conhecer genro novo que eu sigo automaticamente, só misturo os nomes de vez em quando, mas ela também mistura, ninguém liga, eles são modernos. Sem problema, é coisa do passado. Não, cara, é esse segundo turno, esse segundo turno não tinha nada que pintar, cortou a minha legal mesmo. Não digo que seja um problema, mas é uma frustraçãozinha, eu já tinha entrado em outra e agora vou ter de adiar até o segundo turno. Eu queria já estar comemorando hoje, mas vou ter que esperar até o dia 31.

- Não, vai esperar até primeiro de novembro. A eleição é que é no dia 31, o resultado só deve sair em primeiro de novembro.

- Mas eu não queria comemorar resultado nenhum, não estou falando em resultado. Por mim pode dar o resultado que der, é tudo mera formalidade, as tetas continuam as mesmas, só substituíram algumas bocas. Não comemoro resultado nenhum, eles que comemorem, chega de ser otário. Eles é que entram no bem-bom e eu é que vou ficar aqui feito um bobo alegre, comemorando? Não é nada disso, é que eu já tinha me programado todo para esse momento. Minha última eleição, a última vez em que eu tenho de passar por isso.

- Também não é tão dramático assim, votar hoje em dia é muito fácil, ninguém demora muito.

- Você não está sacando nada, a questão não é essa. É a humilhação, eu não quero sofre a humilhação outra vez.

- Você vai me desculpar, mas então não saquei mesmo. Eu não vejo humilhação nenhuma nas eleições.

- É uma questão de sensibilidade. Você não tem a mesma sensibilidade que eu, eu sou um cara muito sensível e meu pai sempre incutiu nos filhos o senso do ridículo, o velho sempre passou para nós um grande senso de ridículo. E talvez você nunca tenha parado para pensar. Acho que meu problema é esse, eu paro muito para pensar e também tenho muito senso de ridículo. Na última eleição, não sei se lhe contei, eu tive uma crise de riso na frente da urna que os mesários quase chamam uma ambulância, grande mico. Na hora eu ri, mas a lembrança é muito desagradável. No fim do ano eu emplaco setentinha, quer dizer, era votar agora e nunca mais. Aí vem esse segundo turno adiar minha festa e renovar minha humilhação.

- Eu ainda não entendi que humilhação é essa.

- É uma questão de sensibilidade mesmo. A você pode não afetar, a mim afeta muito. Em primeiro lugar, a eleição é somente para carimbar o visto para eles se locupletarem ás nossas custas, não importa que papo mandem para cima da gente, tem que prestar atenção no que eles fazem, não no que dizem.

- Está certo que muitos deles sejam assim, mas não todos. Ainda há uns caras sérios por aí.

- Quem, os da esquerda?

- Não necessariamente, não é isso que quero dizer.

- Eu explico a diferença entre a esquerda e a direita. A turma da esquerda meta a mão esquerda no pirão, a da direita mete a mão direita e a do centro deve meter as duas, ou então o bocão logo direito. A função do eleitor é somente carimbar a autorização. E o comparecimento é obrigatório, tem que tomar parte na presepada, mesmo que não queira. Nem a liberdade de se recusar a fazer papel de besta o sujeito tem, é muita humilhação.

- Não concordo, você está sendo radical.

- Para que serve o título de eleitor? Você tem que ter o título, tem que mostrar nas repartições que tem o CPF. É para isso que o título serve, para mostrar que você tem o título. Você parou para pensar nisso direito, não é humilhação? Os caras te obrigam a entrar numa fila e encarar buracracia para tirar um documento cuja única finalidade é mostrar que você tem esse documento. É como ganhar um diploma de diplomado. Atenção, cidadão, o título de eleitor é um elemento importante de sua cidadania e será exigido para tudo, só não será exigido para votar. Para votar, será aceito qualquer documento, menos o título do eleitor, e você acha que não estão curtindo com a cara da gente?

- Realmente acabou dando essa confusão, mas é uma coisa que pode ser corrigida, é um pormenor sem importância. Claro que não vai ficar assim, eu tenho certeza de que não consertar isso, devem bolar um título novo, com a fotografia do eleitor.

- Ah, devem. Vão fazer até melhor, eles não vão deixar passar essa. Vai sair o kit-eleitor, com um exemplar da Constituição, um CD com os hinos brasileiros e o título de eleitor, tudo obrigatoriamente comprado na mão de um único fornecedor. E, enquanto isso, o que eu faço com o título velho?

- Bem, há uma boa resposta para isso.

- Eu sei. E deve ser isso mesmo que eles estão querendo nos dizer, eles humilham.


3 comentários:

  1. ahahahhuhuhahahaahuha

    q paranóia.. parece até comigo. Vou dizer q sou meio assim tb.. ñ nesse sentindo específico.. mas tb fico pensando em coisas parecidas.

    ótimo texto Dri.

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  2. Olá Dri. Sensacional esse texto. Muito bom mesmo. Mais que curti com a cara dos eleitores... nos toma por palhaços mesmo. Se podemos votar com qualquer documento com foto, dispensando a obrigatoriedade de exibir o título de eleitor, então para que diabos ele existe?

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  3. Olá, Adriana. Obrigada pela visita em meu blog.
    Gostei daqui. Voltarei mais vezes!

    Saudações,
    Margot Félix

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